Perspetivas

No início do mês de março, o Secretário-Geral da IACA lançou-me o desafio de escrever um texto nesta Revista, com uma palavra chave – PERSPETIVAS. A sua intenção era a de que eu partilhasse a minha visão sobre o futuro do setor da alimentação animal num quadro em que o mesmo se via confrontado com uma série de nuvens tempestuosas como a poluição causada pelos animais, o aumento das tendências para o veganismo e a consequente diminuição de consumo de produtos de origem animal ou, ainda, a produção de carnes sintéticas ou de laboratório. Estava eu a digerir o desafio e a converter a ideia em palavras quando, vindo do lado para o qual se deslocou Marco Pólo, nos chegou um determinado “senhor” a quem chamaram coronavírus, porque tem coroa de rei, mas que rapidamente denominaram de algo mais científico-COVID-19. A chegada deste “senhor” mudou tudo e em muito pouco tempo. Calou as preocupações anteriores à sua chegada, colocou os Países em estado de emergência, obrigou Donald Trump, Boris Jonhson, Jair Bolsonaro, este na altura em que escrevo este texto ainda resistente, a engolir em seco (como os sintomas da doença) e meterem ao bolso a sua arrogância. Quem diria?

Pois, mas esse “senhor” também me apanhou a mim no meio de uma integração de empresas, obrigou-me a alterar formas de trabalhar, mas não eliminou a minha e nossa determinação em conseguir que este projeto seja um sucesso para nós e para os nossos parceiros. Mas, mesmo assim, obrigou-me a refletir se queria mesmo falar das perspetivas 2020/30, ou se isso neste momento não nos obriga a repensar muitas coisas.

Comecemos pela interligação da economia mundial. Será que a globalização é suficientemente equilibrada e nos permitirá produzir de forma sustentada em todo o mundo? Ou será que estamos a deslocar produções para áreas que deveríamos proteger em nome de uma economia mais rentável? Será que é justo comprar mais barato quando o que se compra mais barato depende de países que não respeitam os direitos humanos, ou as crianças, ou a igualdade de género, ou as raças e como consequência enfrentamos os desequilíbrios que provocam as migrações em massa? Justifica-se tudo isso porque podemos comprar roupas mais baratas, comida mais barata, carros e gadgets muito mais baratos, etc.? Será que se justifica abandonar as nossas terras deixando-as a criar mato a potenciar incêndios e, como consequência, mais poluição e mais desequilíbrio, em nome de uma produção mais barata na Amazónia ou em países com regras sanitárias diferentes para produzir em clara concorrência desleal? Não será tempo de olhar para os nossos agricultores e dar-lhe o valor que realmente têm? Não será tempo de assumir que a produção de alimentos deve ser uma prioridade nacional? Não será tempo de perceber que uma nova economia mais científica, onde os avanços permitem produzir mais e mais seguro, com menos terra e menos uso de água e produtos indesejáveis para o ambiente, possa ser uma realidade positiva? Não será tempo de pensar que o ensino à distância pode potenciar mais retenção de jovens no interior e menos deslocações para os grandes centros, para além de menos gastos para as famílias e um ensino mais democrático? Não será tempo de pensar que se podem usar mais os meios eletrónicos para facilitar a vida dos cidadãos na relação com o estado? Não será tempo de dar prioridade ao conhecimento científico e ultrapassar os medos daqueles que se recusam a perceber que não podemos continuar no modelo que temos? Se há um dado, entre muitos que serão escalpelizados, seguramente, que fica claro, e que este vírus provocou também, é que a poluição diminuiu e muito com as paragens das economias, menos viaturas a circular, menos barcos, menos aviões em suma menos uso de combustíveis fosseis. Basta ver os mapas de Itália e China sobre os níveis de poluição durante os períodos de emergência. Se antes as vacas eram culpadas pela poluição e as mesmas continuam a produzir e comer como sempre, já podemos dizer Aleluia!! as vacas não são as culpadas da poluição.

Outro dado extremamente relevante foi a impossibilidade de parar o que é essencial, a produção de alimentos para o ser Humano. A cadeia alimentar, onde estamos inseridos foi, é e será determinante para o bem-estar de todos os cidadãos sejam eles urbanos ou não e essa realidade é inegável e inquestionável. Esperemos que todos sejam capazes de o entenderem e que todos aplaudam, também, os heróis deste setor, que na frente da batalha, correndo riscos de serem contaminados pelo maldito vírus, trabalharam e trabalham dia e noite para que nada falte nas nossas mesas.

Temos agora uma oportunidade única de demonstrar o valor incomensurável do setor primário e comunicar com os consumidores para que tenham a certeza de que somos responsáveis e nos aplicamos diariamente para fazemos bem o nosso trabalho.

Caro Jaime Piçarra, se tenho que terminar com a palavra perspetivas, termino dizendo: perspetivo que depois desta emergência mundial teremos que construir um mundo onde o conhecimento científico, o respeito pelos direitos do homem, a igualdade de género e raças e a sustentabilidade, se sobreponham aos medos e aos receios daqueles que gostam de cavalgar o lucro fácil, o populismo barato e a ignorância.

António Santana
Diretor da IACA