Quando as perspetivas apontavam para um ano particularmente intenso, com as discussões em torno da revisão da PAC pós-2020, o Quadro Financeiro Plurianual 2021/27 e, sobretudo o Pacto Ecológico Europeu, com a sua estratégia “Do Prado ao Prato”, em apenas um mês tudo mudou, e travamos hoje, a batalha das nossas vidas, seguramente a batalha da minha geração.

Se pensávamos que tudo estava garantido e adquirido, a pandemia colocou em causa e de forma abrupta o nosso modo de vida: a forma como vivemos em Sociedade, fazendo-nos lembrar os filmes e séries de ficção científica, numa realidade que pode ultrapassar os piores cenários se não enfrentarmos a pandemia com coragem, coerência e numa cooperação global, com particular enfase, para a estratégia da União Europeia.

Nestes tempos estranhos, impõe-se recordar duas frases muito utilizadas por alguns mentores do nosso Setor: “Vossa Excelência sofre de fartura”, de Eça de Queiroz – referenciada muitas vezes pelo Prof. Manuel Chaveiro Soares -, e “uma pessoa com fome, só tem um problema” do Prof. Divanildo Monteiro, para ilustrar os grandes desafios de uma era pré-COVID 19.

Mas o que ficará depois desta pandemia? Que lições deveremos tirar?

Com a vida em suspenso, na verdade, o que está em causa é a vida humana, a nossa sobrevivência, aquilo que temos de mais essencial e que urge ser preservado.

Saúde é um valor de que só nos lembramos quando estamos verdadeiramente em perigo, numa Sociedade que, infelizmente, tem avançado para o individualismo, falta de solidariedade e em que esquecemos as consequências do pós-guerra, – o grande pilar da construção da União Europeia. Isto para além das respostas (ou falta delas) ao investimento nos sistemas de saúde.

Mas as reflexões levam-nos igualmente a uma outra nota relevante: a importância da agricultura, do agroalimentar, da alimentação humana e animal, que nós sabíamos que era importante, mas que a crescente população urbana desconhecia ou ignorava (queria ignorar ou fechar os olhos), criticando, ou pondo em causa, o contributo da Alimentação para o equilíbrio social e económico.

E, não menos importante, a soberania alimentar.

Os incêndios florestais já nos tinham alertado para os desequilíbrios em Portugal, com o abandono do Mundo Rural, das populações que vivem no interior, da desertificação e diminuição de explorações e efetivos, da importância da atividade pecuária na preservação do ambiente e da paisagem, porque não podemos abandonar o combate às alterações climáticas, mas talvez agora encará-lo numa outra perspetiva.

Afinal, as vacas continuam por cá (como todos sabemos), mas as medidas tomadas pelos diferentes Governos – à escala europeia e global – têm conduzido a uma quebra significativa na poluição e nas emissões de GEE. Onde está o verdadeiro problema?

Por outro lado, os sistemas que têm sido postos em causa por alguns media e alguma opinião pública ou publicada “de barriga cheia”, que olham (olhavam?) para o mundo rural de uma forma edílica ou romântica, afinal são esses mesmos sistemas que estão a levar a comida aos portugueses para que a cadeia alimentar funcione.

Urge ainda refletir sobre mais duas questões importantes: o comércio internacional e a ciência.

No primeiro, será importante salientar uma evidência que todos sabíamos, que abordávamos em tantas reuniões, em Portugal e no quadro da União Europeia, que pouco era colocado em causa, pela necessidade de sermos competitivos à escala global. Em nome do politicamente correto.

Há quanto tempo assistimos a encerramentos de empresas europeias e à sua deslocalização para outras regiões do globo, em particular para a China? E olhemos para a dependência europeia da China, por exemplo ao nível de aditivos e oligoelementos e uma série de produtos para a alimentação animal e humana? Aqueles que precisamente são os que têm registado casos de alerta no RASFF. E as regras de segurança alimentar, ambientais, condições de trabalho, bem-estar animal e outras?

Esta dependência e atropelos às regras da livre concorrência não podem ficar sem resposta no pós-COVID 19.

Finalmente, a Ciência, que sendo sistematicamente recusada em muitos dos temas ligados à alimentação ou aos sistemas agroalimentares, em nome do princípio da precaução, – tantas vezes politizada em nome do populismo e da democracia, numa clara hipocrisia – como a biotecnologia ou as novas técnicas de melhoramento de plantas -, pode ganhar uma nova relevância e atualidade, quando se colocaram (e bem) os médicos e cientistas a definir os melhores caminhos e soluções, para que os decisores políticos possam tomar as melhores opções: proteger a saúde pública e preservar a economia, mesmo sabendo que é um equilíbrio bem difícil de se atingir, sobretudo numa economia global e interdependente. Contudo, significa que deverá existir uma maior cooperação à escala global.

E é por demais evidente que a Ciência e o Conhecimento têm de estar na base da construção das políticas públicas.

Deixei aqui quatro notas para reflexão: Saúde, Alimentação e Agroalimentar, Comércio Internacional e Ciência.

Porém, muitas outras haveria como a forma como nos organizamos em Sociedade, a ligação com os mais velhos, o teletrabalho, as escolas e universidades, as pequenas lojas e pequeno comércio, de bairro, a relação de proximidade, os stocks estratégicos (abandonados nos últimos anos, com exceção do petróleo), o funcionamento da União Europeia e as suas incoerências, o consumismo, o que é verdadeiramente essencial.

Na altura em que escrevo este texto, temos 60 000 mortes em todo o mundo, metade da população mundial em isolamento, mais de 1 milhão de pessoas infetadas, e nos próximos dias estes números irão aumentar rapidamente.

Itália e Espanha vivem uma situação dramática, os EUA e Brasil, infelizmente, para lá caminham, e em Portugal, com o Estado de calamidade pública em Ovar, cercas sanitárias nos 6 concelhos da Ilha de S. Miguel, e o Estado de emergência em todo o País, que deverá ser prolongado mais algumas vezes, já sabemos que o pico da doença se vai atingir em finais de abril, ou talvez em maio, o que significa que vamos ter mais mortos e casos a lamentar, não sendo de excluir mais zonas de isolamento e cordões sanitárias. Certamente mais tempo de paragem. Ainda algum tempo para o regresso à normalidade.

Maior impacto económico negativo, que pode atingir uma quebra até 10% do PIB,  e um desemprego superior a 13%, seguramente nos dois dígitos. Com impactos muito para além de 2020 e talvez nos próximos 2 anos.

Depois do bom desempenho de 2019 e das previsões que tínhamos para 2020, apesar de tudo…temos hoje uma situação inimaginável. Afinal, é tudo relativo!

Durante este período a indústria da alimentação animal não tem parado, não irá parar.

Pese embora as dificuldades em assegurar um funcionamento de normalidade, com toda a pressão e stress, os trabalhadores e as empresas têm sido verdadeiros heróis na linha da frente e aqui lhes deixamos a justa Homenagem, juntamente com os profissionais de saúde, da logística, de limpeza e higiene, a Agricultura e todo o setor alimentar e os que lutam diariamente para que não faltem bens essenciais nas nossas mesas e possamos viver ainda com alguma normalidade, neste forçado isolamento mas essencial para travar esta batalha.

A IACA também não tem parado e os nossos Associados sabem bem o que temos feito, onde estamos e como os temos ajudado a enfrentar estas dificuldades. Em linha aberta com o Governo, com a DGAV e GPP, com os nossos parceiros de Fileira, agrícola e agroalimentar, em Bruxelas, com a FEFAC e os colegas europeus, a quem também agradecemos.

Força, Coragem, Resiliência e Determinação… As vidas que o coronavírus ceifou têm de valer a pena para que o Mundo possa mudar e nós com ele.

Tenho a esperança de que nada ficará como dantes, porque a pior pandemia é a que nos tolhe a capacidade de agir, pensar e não aprender com as crises.

Jaime Piçarra

Engº Agrónomo e Secretário-Geral da IACA

Fonte: Agroportal