Organismos geneticamente modificados: a perspectiva da indústria de alimentos compostos para animais

Introdução

Dada a importância do milho e dos produtos do complexo soja na alimentação animal – representando cerca de 30% e 20%, respectivamente, ou seja, cerca de 50% do total das matérias primas consumidas – o debate em torno da utilização de organismos geneticamente modificados assume particular relevância na indústria de alimentos compostos para animais. Por outro lado, é preciso não esquecer a dependência do exterior no aprovisionamento de matérias primas – sobretudo num quadro em que se encontra proibida a utilização de proteínas animais transformadas na alimentação animal – sendo o nosso país deficitário em cerca de 70%, com a soja a representar uma dependência total, sendo importada da Argentina, Brasil e Estados Unidos. Nesta perspectiva, a problemática dos OGM deve ser discutida por um lado, no âmbito da segurança alimentar/preocupação dos consumidores (inocuidade dos alimentos) e, por outro lado, em termos da globalização dos mercados/negociações da Organização Mundial do Comércio, ou seja, no âmbito da competitividade futura da indústria de alimentos compostos – tanto mais que os custos de aprovisionamento representam cerca de 80% dos custos dos alimentos compostos – e, dada a importância das rações nos preços da pecuária, à luz da capacidade competitiva de toda a Fileira Pecuária.

II – A Segurança Alimentar

Com as crises da BSE (1996 e 2000) e das dioxinas (1999), os problemas ligados à alimentação animal passaram a ser objecto de análise e alguma especulação na comunicação social, muitas vezes com um carácter bastante mais emotivo do que científico, conduzindo a uma má imagem dos produtos junto dos consumidores.  Os problemas relativos ao ambienterastreabilidade dos produtos e segurança alimentar (BSE, antibióticos, OGM, dioxinas, resíduos) assumem já hoje particular importância, exigindo-se por parte de todos os agentes económicos uma maior preocupação com a qualidade e com regras de produção e de controlo dos produtos, desde a exploração agrícola até aos pontos de venda. O Livro Branco da Comissão Europeia sobre segurança alimentar aponta um caminho relativamente claro e define um conjunto de propostas legislativas que não deixam dúvidas de uma perspectiva de segurança e controle, global e integrada “stable to table” (desde a exploração agrícola à mesa do consumidor), em que cada parceiro na cadeia alimentar deve assumir as suas responsabilidades, ou seja, todos são co-responsáveis pela segurança dos alimentos, sendo claro, no âmbito do Livro Branco que “a segurança dos produtos alimentares de origem animal começa com a segurança da alimentação animal”. De facto, a segurança alimentar – o fornecimento de produtos seguros e isentos de risco – sempre foi uma das preocupações da indústria de alimentos compostos e continuará a sê-lo, pelo que os mecanismos de autocontrole, a introdução de Códigos de Boas Práticas, as normas ISO ou o sistema HACCP (controle dos pontos críticos dos processos de fabrico) serão instrumentos essenciais a ter em conta, não só pela indústria mas igualmente pelos fornecedores de matérias primas para a alimentação animal. Deste modo, importa saber se um OGM é ou não um produto isento de risco e, como tal, passível de ser utilizado pela indústria. Esta resposta compete desde logo aos cientistas e deve ser baseada em critérios científicos, cuja informação deve constituir a base da política de segurança dos alimentos na União Europeia e não as percepções ou emoções dos consumidores.

Nos EUA, a aprovação de produtos GM é um processo relativamente complexo e exigente, com uma duração de cerca de 18 meses (180 dias na APHIS) e que exige a aprovação de diversas entidades, consideradas credíveis, na área do ambiente (EPA), agricultura (APHIS) e saúde pública (FDA), num processo que é avaliado de acordo com critérios científicos. Uma vez aprovados os novos produtos, estes são considerados isentos de risco e, como tal, podem ser comercializados sem problemas quer para a saúde animal quer para a saúde humana. Na União Europeia, o processo de aprovação exige igualmente uma apreciação científica do problema, no âmbito de diferentes Painéis Científicos que funcionam sob a tutela da AESA (Autoridade Europeia para a Segurança dos Alimentos), com uma forte ligação à Direcção Geral da Saúde e Protecção dos Consumidores (DG SANCO), tutelada pelo Comissário Markus Kiprianou que é igualmente responsável pelo sector da alimentação animal. Deste ponto de vista, quando a Comissão Europeia aprova as novas variedades, estas devem ser comercializadas no espaço europeu e passíveis de utilização de uma forma segura. Nesta perspectiva, se um produto é aprovado, deve ser considerado seguro e potencialmente utilizável; caso contrário não deve ser utilizado, pelo que a legislação tem de ser clara, exequível e objectiva, devem existir acções de controle e fiscalização em todos os pontos do circuito, não podendo ser deixado à indústria o ónus de se utilizarem produtos que suscitem desconfianças nos consumidores.

Em nossa opinião, a grande discussão em torno dos OGM – a que não são alheios problemas de âmbito comercial e protecção aos mercados mas igualmente uma falta de confiança nos sistemas de regulação – tem a ver com perspectivas diferentes de encarar esta matéria na Europa e nos EUA e que têm sido transpostos para as questões da rotulagem/segregação em que a decisão política de uma livre escolha do consumidor mais não tem feito senão confundir a opinião pública. A recente legislação sobre a rotulagem e rastreabilidade dos OGM que entrou em vigor em meados de Abril é, na prática, de difícil execução e as reacções da parte dos países exportadores como os EUA têm sido de grande cepticismo, uma vez que poderão onerar os custos dos produtos, podendo limitar as vantagens de utilização dos OGM, reconhecidas recentemente em organismos internacionais como a FAO. A legislação exige métodos de análise que terão de ser padronizados e harmonizados a nível europeu e a obrigatoriedade da rotulagem obedece a um limiar de 0.9%. Preocupa-nos a questão da rastreabilidade, dado que por exemplo, em França, país onde não é permitida a cultura de transgénicos, 40% das análises ao milho, apresentaram vestígios de OGM, de 0.3% e 0.1%. Como garantir, neste quadro, a rastreabilidade e o fornecimento de alimentos isentos de OGM – E o problema das contaminações cruzadas? Como garantir fileiras não-OGM ? São questões até agora sem resposta…

III – Competitividade/Globalização

A utilização de organismos geneticamente modificados representa igualmente um desafio, tanto mais que nos encontramos perante uma população mundial que cresce assustadoramente enquanto se assiste a uma diminuição da terra arável. Confrontados com uma duplicação da população mundial nos próximos 40 anos, torna-se necessário incrementar a produção alimentar em cerca de 250%, pelo que, a par dos problemas ambientais, a biotecnologia, com a sua capacidade para melhorar o rendimento, a qualidade e o valor nutritivo dos alimentos poderá ser uma das chaves do problema, pese embora a grande questão tenha a ver com a distribuição dos alimentos. Refira-se que no âmbito de uma reunião do Grupo Especial Intergovernamental do Codex Alimentarius que decorreu no Japão em Março de 2000, organização ligada à FAO, se reconheceu que “a biotecnologia oferece possibilidades de crescimento da produção e da produtividade da agricultura, da pesca e das florestas e que permitirá a obtenção de maiores rendimentos nas terras marginais, nos países em que a produção actual é insuficiente para alimentar as respectivas populações.” Por outro lado, é sabido que nas negociações da Organização Mundial do Comércio, iniciadas na Conferência de Doha, se espera uma maior abertura dos mercados europeus ao mercado mundial e uma menor protecção dos mercados, ou seja, a crescente liberalização das trocas comerciais exige que todos os países adoptem iguais procedimentos, sendo inadmissível que a União Europeia venha a impor maiores exigências e restrições aos seus operadores do que as que são impostas ás trocas comerciais de países terceiros, sob pena de perda de competitividade da Europa e deslocalização de empresas europeias para outros países, para fora do espaço comunitário. Nesta perspectiva, a aprovação de novas variedades deverá constituir um processo simultâneo nos EUA e na Europa, tanto mais que se assiste a uma explosão de produtos OGM em todo o mundo, sobretudo em países importantes como os EUA, Argentina, Brasil e Canadá, enquanto na Europa são conhecidos os problemas em torno desta matéria, sendo a Espanha actualmente o único país em que está autorizada a sementeira de milho transgénico. Em Portugal, depois de terem sido autorizadas as sementeiras de 2 variedades de milho, o Ministério da Agricultura suspendeu o processo em Dezembro de 1999, à luz do princípio da precaução, sendo no entanto possível a importação de variedades transgénicas autorizadas pela União Europeia.

De facto, a nível mundial, de acordo com organizações especializadas nesta matéria, em 2004, as culturas transgénicas (soja, milho, colza e algodão) foram semeadas numa área de cerca 81 milhões de hectares, um crescimento de 20% comparativamente a 2003. O número de países considerados como importantes produtores de transgénicos (com áreas superiores a 50 000 hectares) passou de 10 em 2003 para 14 em 2004. Recorde-se que as culturas transgénicas começaram a ser cultivadas em 1996, ocupando então uma área de 1.7 milhões de hectares. Os EUA, com 47.6 milhões de ha (59% da superfície mundial, com produções de soja, milho, algodão e colza), lideram a área de transgénicos, seguido da Argentina (20%, com soja, milho e algodão), Canadá (6%, colza, milho e soja), Brasil (6%, apenas soja), China (5%, apenas algodão), Paraguai (2%, apenas soja), Índia (1%, apenas produz algodão), e África do Sul (1%, com produção de milho, soja e algodão). Estima-se que antes do final do decénio, 15 milhões de agricultores possam cultivar transgénicos numa área de 150 milhões de hectares em 30 países.

Deste modo, a maior parte das matérias primas importadas destes países – a principal fonte de aprovisionamento da União Europeia – é potencialmente geneticamente modificada. De acordo com a legislação, não é suficiente a não ultrapassagem do limiar de 0.9%: é igualmente necessário que os operadores demonstrem que tomaram todas as medidas indispensáveis para evitar a presença acidental.

Em Portugal, a discussão em torno dos OGM, decorrente sobretudo do “diferendo” de pontos de vista entre os EUA e a União Europeia já está a ter um impacto negativo na indústria de alimentos compostos para animais, ao nível do contingente de 500 000 toneladas de milho de países terceiros. Nos últimos três anos, uma vez que a Europa aprovou um menor número de variedades de milho do que as existentes nos EUA e como este país insiste na não segregação, tem-nos sido vedada a possibilidade de importarmos milho daquele país, tendo o milho sido importado dos países de Leste e da Argentina, o que desvirtua por completo os objectivos do contingente, pelo que, reduzidas as fontes de aprovisionamento, existirão condições para um aumento de preços e provavelmente, no médio prazo e a manter-se o actual statuos quo, o contingente não se esgotará uma vez que os mercados alternativos não poderão assegurar as quotas de milho destinadas a Portugal e Espanha. Nesta perspectiva é necessário garantir que as variedades aprovadas nos EUA e noutros países sejam aceites na União Europeia. Por outro lado, se até agora a utilização de OGM e o debate sobre esta matéria tem incidido apenas em questões ambientais como a resistência aos insectos e aos herbicidas, a utilização de variedades de milho e outras matérias primas transgénicas, tenderá a assumir uma diversificação crescente, incidindo na composição e na qualidade do grão, como os teores em amido, óleo e proteínas, com potencial interesse para a alimentação animal, designadamente o aumento do teor em lisina, a melhoria da digestibilidade do fósforo pelos monogástricos e uma maior digestibilidade das forragens pelos ruminantes.

A IACA entende que, por razões ambientais ou de melhoria da qualidade do grão, a utilização de produtos OGM em condições de segurança para a saúde pública e animal, poderá contribuir para a redução de custos e melhorar a competitividade dos produtos, cada vez mais inseridos em mercados globalizados à escala mundial. Tendo como missão satisfazer as necessidades dos seus clientes e actuando no rigoroso cumprimento da Lei, a indústria nacional de alimentos compostos saberá estar à altura das suas responsabilidades, oferecendo ao mercado alimentos seguros e isentos de risco e actuando de forma a preservar e a promover a saúde animal, com reflexos positivos na segurança dos consumidores.

OGM /SEGURANÇA ALIMENTAR – Cronologia dos Principais Acontecimentos

  • Crise das Dioxinas na Bélgica (Junho 1999)
  • Livro Branco Segurança Alimentar da Comissão Europeia (Janeiro 2000)
  • Protocolo de Biosegurança (finais de Janeiro 2000, Montreal)
  • Documento da Comissão sobre o Princípio da Precaução (Fevereiro 2000)
  • 1300 cientistas de todo o mundo defendem utilização das biotecnologias (Fevereiro 2000)
  • Adiadas novas autorizações de culturas transgénicas (Comité Regulamentar da UE, Março 2000)
  • Grupo intergovernamental do Codex defende utilização das biotecnologias (Japão, Março 2000)
  • Etiquetagem obrigatória para a alimentação humana (Abril 2000)
  • Parlamento Europeu mostra maior flexibilidade na revisão da Directiva 90/220 sobre a disseminação dos OGM (Abril 2000)
  • Nova crise da BSE, com retirada das farinhas animais, a partir de Janeiro de 2001, e necessidade de aumentar o consumo de proteínas vegetais (último trimestre de 2000)
  • Revogação da Directiva 90/220, com a aprovação da nova Directiva 18/2001 (Abril 2001)
  • Publicação das propostas de regulamento sobre rastreabilidade e etiquetagem (Julho 2001)
  • Conselho de Ministros do Ambiente decide manter a moratória (Outubro 2001)
  • 1ª Leitura do Parlamento Europeu (Julho de 2002)
  • Parlamento Europeu aprova projecto de resolução sobre levantamento da moratória e estratégia para a biotecnologia (21 de Novembro de 2002)
  • Acordo político do Conselho Agrícola sobre rotulagem (28 de Novembro de 2002)
  • Decreto-Lei n.º 72/2003, de 10 de Abril, que regula a libertação deliberada no ambiente de organismos geneticamente modificados (OGM) e a colocação de produtos que contenham ou sejam constituídos por OGM, transpondo para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 2001/18/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Março (Abril de 2003)
  • 2ª Leitura do Parlamento Europeu (Julho de 2003)
  • Conselho de Ministros aprova regulamentos (Julho de 2003)
  • FIPA e IACA, em conjunto com as autoridades oficiais (DGV, DGFCQA e Instituto do Ambiente) elaboram Guia de Aplicação dos Regulamentos sobre OGM (Março de 2004)
  • Entrada em vigor dos Regulamentos relativos à rastreabilidade e rotulagem dos géneros alimentícios e alimentos para animais geneticamente modificados: Reg. (CE) n.º 1829/03 e Reg.(CE) n.º 1830/03, do Parlamento Europeu e do Conselho, ambos de 22 de Setembro de 2003 (Abril de 2004)